um dia há a fome

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um dia há a fome. não essa habitual fome surda e continuada,
a básica fome da ilha - estilo central com suas tréguas que
empenham de novo o homem no acto de viver. há a fome extrema.
então as mulheres saem das casas e atravessam os caminhos em
grupos mudos. têm as caras das pessoas velhas embora algumas
sejam ainda mulheres jovens. o seu passo é incerto, porque
saem pouco. estão desesperadas e dirigem-se às autoridades
da ilha. caminham num passo sem jeito, vestidas de negro,
com aquele pensamento femininamente feroz do pão, a deter-
minação de fêmeas ameaçadas nos fundamentos da vida. é uma
fome imediata, um pouco sem dignidade. não atinge a forma de
ideia, uma expressão de silêncio sombrio. é uma fome-fêmea,
e por isso será remediada.
os homens estão deitados na praia, e ir às autoridades é a
última coisa, a coisa desesperada, convincente, brutal e
eficaz que pertence às mulheres. esse alarde a que não fal-
ta malícia não é dos homens. o orgulho inútil é que é dos
homens. ficam na mesma posição, olhando para o mundo. e nes-
se orgulho imóvel de que extraem não se sabe que confusa
justificação, sentem toda a fome por todas as partes do cor-
po. é uma fome-macho, e por isso não seria remediada se a
seu lado se não tivesse desenvolvido, com toda a ignóbil e
engenhosa energia, a fome das mulheres. é a salvação.
as autoridades redigem um apelo às ilhas vizinhas mais, fer-
téis, e depois chega um barco com farinha de milho e barri-
cas de carne seca.
Herberto Helder

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